quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Uma leitura de:

Patrimônio e ambiente da loucura: a formação do profissional de saúde mental e o diálogo com a vida da cidade (OLIVEIRA, Walter F. de; DORNELES, Patrícia).

Os autores apresentam temas discutidos no 1º Seminário Patrimônio e Ambiente da Loucura, realizado em 2001, no qual se abordou aspectos como o espaço de inclusão da loucura na vida da cidade e a formação e o papel dos profissionais na mudança de paradigmas em saúde mental.

A partir da redefinição do que é patrimônio - entendido aqui como o conjunto dos bens materiais e intangíveis e simbólicos de um povo (incluídas aqui sua subjetividade e identidade), inseparáveis de sua história - e do que pode ser compreendido por ambiente, definido como “espaço físico e existencial” onde ocorrem todas as relações entre seres, tanto biológicas quanto políticas, afetivas e comerciais, torna-se possível compreender a questão da loucura, ainda que imposta por meio da exclusão, como parte integrante da vida urbana. É discutido o patrimônio histórico da doença mental, cujo ambiente, desde o período pós-renascentista (Foucault, 1999), é estanque, dissociado do contexto das cidades, e caracterizado pelas instituições manicomiais.

É justamente contra esse estado de coisas que se colocam os autores que, com base na obra de Guattari (2001), propõem a interface entre as dimensões psicológica e estética na formação e atuação dos profissionais de saúde mental. Guattari considera que, na contemporaneidade, as relações sociais e interpessoais estão deteriorando-se, do mesmo modo que se deteriora a relação entre a humanidade e o meio-ambiente. Para reverter este quadro, propõe uma ecosofia, composta por três ecologias: a social, a mental e a ambiental. Desta forma, preconiza a reconfiguração das maneiras do ser-em-grupo, assim como das relações corpo-mente e com a subjetividade em geral. Ele afirma que só a rearticulação destes três registros fundamentais da ecologia poderá neutralizar a intolerância contra os diferentes, combatendo a exclusão. Fica evidente aqui a relevância e responsabilidade ética dos profissionais “psi” neste processo de reconstrução, assim como a de “todos aqueles que estão em posição de intervir nas instâncias psíquicas individuais e coletivas (através da educação, saúde, cultura, esporte, arte, mídia, moda, etc)” (Guattari, 2001, p.21).

Porém, como exigir dos profissionais da saúde mental este tipo de postura, se a sua prática ainda é feita segundo uma “dinâmica de monólogos” que impede o respeito pela diversidade e a valorização do diferente? Os autores apontam que, apesar de um discurso pedagógico progressista e reformador, o currículo oculto dos cursos de formação trabalha para a manutenção da discriminação, sem ouvir opiniões diversas àquelas já consolidadas. Os profissionais acabam por assumir um lugar de saber que impede a implantação de um sistema efetivamente terapêutico. Ainda que a reforma psiquiátrica busque substituir as instituições totais por outros serviços de saúde mental, mais humanizados e humanizantes, a lógica que prevalece na formação e prática dos profissionais ainda é a manicomial.

Os autores defendem que é necessário um trabalho estrutural de promoção do diálogo, de escuta do humano com todas as suas idiossincrasias, dentre as quais se encontra a loucura. Uma das possibilidades mais promissoras para a promoção de uma dinâmica dialógica é a derrubada das barreiras entre áreas de atuação, através daquilo que Morin (2003) chama de polidisciplinaridade. Segundo ele, “há inadequação cada vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados, compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais, transnacionais, globais, planetários” (p.13). Para Morin, a fragmentação do saber “atrofia as possibilidades de compreensão e de reflexão, eliminando assim as oportunidades de um julgamento corretivo ou de uma visão a longo prazo” (p.14). Seguindo esta lógica, como tratar uma problemática tão ampla e com tantas implicações como a doença mental como um campo isolado, exclusivo das áreas “psi”, sem empobrecer a relação terapêutica?

O artigo levanta questões cruciais àqueles que pretendem lidar com algo tão delicado e subjetivo como o sofrimento humano. Como atuar de forma sensível, a partir de um modelo que não mais reproduza as práticas consolidadas até aqui, exige de nós a capacidade de agir sobre a realidade, criativa e criticamente.


Referências

FOUCAULT, Michael. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 1999.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 1981. Online. Disponível em:http://www.esnips.com/doc/21f66ea8-b167-4f98-aac7-639996220cfc/Paulo-Freire---A%C3%A7%C3%A3o-Cultural-para-Liberdade-(pdf) Acesso em : 27 out 2008.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 2001.

MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.